
Quem foi criado por pai ou mãe narcisista, tem dificuldade de identificar quais são as suas próprias necessidades e aquilo que é alinhado ou não com sua bússola interna*. O uso da palavra bússola interna é muito usado nos programas de apoio a sobreviventes de narcisismo e faz uma referência ao nosso centro de identidade, também conhecido como Essência, Self, Alma ou Eu Superior.
Por termos ficado com nosso senso de identidade bagunçado, anulado, às vezes destroçado, a principal busca dos filhos de pais narcisistas precisa ser a independência psicológica com relação a seus pais. E essa foi a minha busca também, mesmo que no início, eu não tenha entendido direito que era isso que eu precisava.
Identificar e satisfazer nossas próprias necessidades é um desafio gigante para nós que vivemos esse tipo de abuso. Somente com muito treino, junto com o estudo de materiais especializados que explicam como funciona essa dinâmica, é que conseguimos, aos poucos, atingir a libertação emocional e psicológica.
Curso salva-vidas
No início da minha jornada de cura, quando ainda estava chocada, estarrecida, em completo estado de consternação pela descoberta do narcisismo na minha família, busquei toda ajuda possível. No meu caso a única ajuda possível estava na internet (e se a gente for pensar bem, isso não é tão pouca coisa considerando que há poucos anos atrás, esse assunto não estava disponível em lugar algum). Chorando dentro de casa, com o medo instalado no corpo, comecei minha jornada vendo vídeos no Youtube. Com fome de sobrevivente, assisti todos os vídeos que pude, consumi todo material que havia gratuito e que eu dava conta de assimilar.
Dentre as pessoas que me ajudaram a salvar a vida, uma das mais relevantes foi a psicanalista Taryana Rocha. Ela foi uma pioneira no Brasil a falar sobre narcisismo materno, e contribuiu imensamente ao começar a traduzir para o português textos e artigos que só existiam em inglês e que eram de difícil acesso. Há mais de 15 anos a Tary estuda e trabalha com este assunto, e na atualidade ela é uma das maiores referências quando o assunto é oferecer um caminho de libertação da prisão emocional que o narcisismo traz.
Não posso deixar de falar da Tary porque meu coração clama de gratidão pelo trabalho dela. Ela tem centenas de vídeos gratuitos na internet e oferece também cursos sobre narcisismo, tanto voltados para sobreviventes quanto para terapeutas. Na época fiz o curso específico para sobreviventes de mães narcisistas, onde a Tary propõe uma série de exercícios associados a uma estrutura de conhecimento teórico. E são essas duas coisas juntas, exercício prático e conhecimento teórico, que formam a base do caminho gradativo de cura e libertação para pessoas que viveram um trauma tão profundo.
Descobri sobre o narcisismo em 2019 e em 2020, isolada na pandemia, comprei o curso e coloquei toda minha energia nos exercícios propostos pela Tary. É impressionante como a nossa mente fica bagunçada depois de conviver por anos com narcisistas. E não é por acaso que a principal mensagem do curso dela é: “Quando a sanidade da mente é restaurada ela toma decisões corretas”.
Essa afirmação realmente é um eixo de poder que norteia o caminho de resgate e libertação que precisamos percorrer. Somente quando restauramos a mente é que podemos ter discernimento de qual caminho tomar, e saber quando dizer sim e quando dizer não. E não é exagero afirmar que a nossa mente fica mesmo extremamente bagunçada por ter convivido por anos com a perturbação da mente narcísica.
Luz no fim do túnel
Entretanto, à medida que caminhamos na trilha da restauração emocional, passamos a perceber que nossa mente sabe sim o que é certo e o que é errado. Existe um marcador dentro de nós que precisamos aprender a escutar. De acordo com a Tary (e eu concordo totalmente), todos nós nascemos com uma bússola interna que é capaz de nos informar sobre o que é adequado, e sobre o que não é adequado para nós. Essa bússola, ou voz interna, nos comunica através da intuição e também através de respostas emocionais e fisiológicas.
Vou dar um exemplo de resposta fisiológica: quando vamos falar com uma pessoa que aparentemente é alguém legal, mas quando a gente vai falar com essa pessoa, percebemos nosso batimento cardíaco acelerando e a garganta ficando travada. Essas reações esquisitas são sinais fisiológicos claros que nos alertam sobre a possibilidade de tal pessoa não ser tão boa quanto parece, ou então que ela pode ser boa, mas que por algum motivo ela nos aciona gatilhos de trauma (os famosos flashbacks emocionais).
Ferramenta com defeito
Embora todos nós tenhamos nascido “de fábrica” com essa bússola interna, quando se trata de filhos de pais narcisistas, essa ferramenta fica com defeito. Isso porque ao ficarmos expostos por muitos anos a uma atmosfera abusiva, nós filhos, perdemos a conexão com nossa bússola interna. Ainda que ela continue existindo, nós não conseguimos acessá-la. E todos os problemas que colecionamos durante a vida se originam dessa desconexão.
Com o marcador interno desregulado, nossa intuição e todas as experiências emocionais e físicas que nos conectam com a realidade, ficam distorcidas, interrompidas ou prejudicadas. A gente se perde de quem a gente é e se enreda num conflito interno entre ser fiel ao nosso Eu Verdadeiro (Self/Essência/Bússola) ou ser fiel aos nossos pais e à nossa família. Nesse conflito de lealdade entre nós e nossa família, acabamos abrindo mão do contato natural que temos com nosso Self, ou a bússola que nos orienta, que é a sede da nossa lucidez, discernimento, sabedoria e intuição.
Então toda busca dos filhos de pais narcisistas precisa necessariamente caminhar no sentido de se reconectar com essa bússola, o Eu Verdadeiro ou o Self. E precisamos exercitar essa reconexão várias vezes por dia, todos os dias, incansavelmente, até que ela se restabeleça definitivamente, não importa quanto tempo isso leve.
Restaurando o aparelho
E é muito interessante perceber que de fato, nossa mente sabe se curar do abuso narcisista sozinha, contanto que ela esteja sã. A sanidade da nossa mente não deixa de existir, ela só fica escondida ou temporariamente inacessível. A única coisa que precisamos fazer é nos conectar com a parte da nossa mente que tem a sanidade ou essa informação. Essa parte da nossa psique que sabe nos curar e sabe o que fazer é o que chamamos de bússola interna. A bússola é a Própria Centelha Divina ou o Eu Verdadeiro. Tudo o que precisamos fazer é entrar em estado de silêncio e ouvir o sussurro do Eu Verdadeiro em nosso interior. Sim, é simples (mas nem tudo que é simples é fácil). Essa prática exige treino. Principalmente porque temos muita dificuldade para ficar em silêncio.
Pois bem. Devido aos nossos traumas de abandono, acabamos sendo leais às expectativas dos outros ao invés de nós mesmos, e assim acabamos abrindo mão da conexão entre nossa psique e a nossa bússola interna. E é por isso que a gente vai ter que treinar, sistematicamente, para restabelecer essa conexão.
Podemos considerar esse processo sendo muito parecido com o de ir para a academia pela primeira vez. É óbvio que não veremos resultados imediatos e teremos que repetir os exercícios durante meses antes de realmente ver algum tipo de transformação. Por isso devemos repetir essa habilidade consistentemente até que ela se torne um hábito que vai nos acompanhar para o resto da vida.
Quando nos conectamos com nosso centro interno de direção, nossa mente finalmente consegue pensar de forma lúcida e distinguir exatamente qual caminho tomar. Inclusive, sem precisar esperar que uma autoridade externa nos diga o que é certo e errado.
Saber qual caminho tomar, saber quando dizer sim e quando dizer não é, sem dúvida, o maior economizador de tempo, energia e sofrimento que devemos conquistar. Voltar à lucidez (ou adquiri-la pela primeira vez) é a base de uma nova vida de liberdade com inúmeras possibilidades.
Desejo que todos nós possamos retornar ao lar do nosso Eu Verdadeiro, à vida lúcida e repleta de amor, satisfação e autonomia que está ansiosamente nos aguardando.
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